Relê com Distanciamento

Antes de editar um livro é preciso conhecê-lo. A primeira fase da edição é terminar o manuscrito — ou pelo menos ter uma estrutura clara do que será. Só assim tiramos verdadeiro proveito da edição, sem cair no erro de rever e reescrever mais vezes do que o necessário (e já são tantas as necessárias!).

Mesmo que tenhas sido tu a escrever cada linha, é essencial veres o livro como um todo. E para isso, antes de editar, tens de ler com distanciamento.

Depois de terminar um manuscrito, a tentação de voltar a mexer nele é enorme. Mas logo após escrever, estás demasiado envolvida na história. Conheces cada cena, cada frase — e isso torna difícil ver falhas de lógica, repetições ou partes confusas. Ganhar distância é o primeiro passo para avaliar o texto com clareza.

Como ganhar distância

  • Dá tempo ao texto: afasta-te durante dias ou semanas. O intervalo ajuda a quebrar o apego imediato e permite que voltes a ler com mais objetividade.
  • Muda o formato: imprime o texto, exporta para PDF, lê num e-reader ou até no telemóvel. O simples facto de mudares o “suporte” já muda a perceção.
  • Lê num formato onde não possas editar: não uses o mesmo documento em que escreveste. Se tiveres a possibilidade de editar logo, vais perder o olhar global e cair na tentação de corrigir vírgulas em vez de perceber se a estrutura da história funciona.
  • Lê em voz alta: ouvir o texto ajuda a identificar frases demasiado longas ou confusas, nomes complicados ou difíceis de memorizar, sons repetidos (como excesso de “que”), diálogos artificiais que não soam como conversa real e ritmos monótonos, quando todas as frases têm o mesmo tamanho ou cadência.

Técnicas de leitura ativa

Nesta fase o objetivo é observar e anotar — não reescrever.

  • Anotar à margem: escreve reações, sentimentos, perguntas que surgem como leitora. Ex.: “esta cena é lenta”, “adoro esta imagem”.
  • Sublinhar e circular: destaca repetições, incoerências, passagens que não funcionam ou partes fortes. Usa cores diferentes para temas distintos — por exemplo, amarelo para incoerências, azul para momentos fortes.
  • Procura padrões: se encontras os mesmos problemas em vários pontos (ritmo lento, descrições excessivas, cenas pouco claras), anota-os. São pistas para a edição.
  • Perguntas-chave: “Esta cena faz avançar a história?”, “Este diálogo é credível?”, “Estou a conseguir fazer o leitor sentir com a personagem?”, “As minhas descrições usam os cinco sentidos?”, “Sabemos em cada capítulo onde e quando estamos?”, “O que esta personagem quer aqui?”, “Esta informação é clara?”
  • Caderno de impressões: mantém uma lista geral de observações num caderno ou bloco de notas.

Usa o método que preferires (PDF com comentários, impressões em papel, post-its, notas num caderno), mas lembra-te: não abras o Word e não edites já. Vais perder a visão global do livro.

O que observar

Enquanto relês com distanciamento, foca-te em aspetos centrais:

  • Estrutura: a ordem dos acontecimentos faz sentido? Há partes redundantes? A história tem começo, meio e fim?
  • Ritmo: há trechos que se arrastam? Outros apressados? Há equilíbrio entre ação, descrição e reflexão?
  • Voz narrativa: é consistente e adequada à história?
  • Coerência: a história mantém-se fiel ao tom e aos temas definidos no início? As ações e reações das personagens estão de acordo com o que sabemos delas? Os acontecimentos fazem sentido no conjunto?

Sem crítica destrutiva

É normal o texto não estar perfeito. É normal precisar de trabalho. É normal não veres tudo à primeira. Faz parte do processo.

Se colocares os ingredientes de um bolo numa tigela sem preparar, não sai dali nada. O teu primeiro manuscrito é como essa tigela: tens os ingredientes. Agora precisas de medir, mexer, tirar as cascas, cozinhar, deixar arrefecer e provar.

Aceita que vais encontrar falhas — isso não significa que falhaste. Significa apenas que agora tens consciência delas e estás a evoluir. A escrita é uma constante evolução.

Nesta leitura não é altura de corrigir nem de desesperar com o que não funciona. É apenas o momento de observar. Distanciar-te do teu texto é um exercício de desapego: deixas de ser a escritora e assumes o papel de leitora crítica

.E o próximo passo?

Quando terminares esta leitura ativa, terás um mapa de anotações que vai guiar a tua edição. Esse será o momento de planear mudanças e decidir prioridades — mas sem te perderes em loops infinitos de reescrita.
No próximo artigo, vamos transformar estas observações em ação e mergulhar no processo de edição propriamente dito.